improviso n.9
A Criança no Espelho

(...)

O meu impaciente amor transborda em torrentes, precipitando-se desde o oriente até o ocaso. Até minha alma se agita nos vales, abandonando os montes silenciosos e as tempestades da dor.

Demasiado tempo sofri e estive em perspectiva. Demasiado tempo me possuiu a solidão. Agora esqueci o silêncio.

Todo eu me tornei qual boca e murmúrio de um rio que salta de elevados penhascos: quero precipitar as minhas palavras nos vales.

Corre o rio do meu amor para o insuperável. Como não encontraria um rio, enfim, o caminho do mar?

Sem dúvida há um lago em mim, um lago solitário que se basta a si mesmo; mas o meu rio de amor arrasta-o consigo para o mar.

Eu sigo novas sendas e encontro uma linguagem nova; à semelhança de todos os criadores, cansei-me das línguas antigas. O meu espírito já não quer correr com solas gastas. Toda a linguagem me torna moroso.

Salto para o teu carro, tempestade! E a ti também quero fustigar com a minha malícia.

Quero passar por vastos mares como uma exclamação ou um grito de alegria, até que encontre as ilhas bem-aventuradas onde moram os meus amigos, e entre eles os meus inimigos. Como amo agora todos a quem posso falar! Os meus inimigos também formam parte da minha ventura.

E quando quero montar no meu mais fogoso cavalo, nada me ajuda tanto como a minha lança; sempre está pronta a servir-me, a lança que brando contra os meus inimigos.

É muito grande a tensão da minha nuvem; por entre os risos dos relâmpagos quero lançar granizo às profundidades.

Formidavelmente se alevantará o meu peito; formidavelmente soprará a sua tempestade; assim se aliviará.

Verdadeiramente, a minha felicidade e minha liberdade sobrevém como tempestades. É mister, porém, que os meus inimigos imaginem que o mal desencadeia sobre as suas cabeças.

Sim, também a vós, meus amigos, vos assombrará a minha escorpiana sabedoria, e talvez vos ponhais em fuga com os meus inimigos.

Ah! Saiba eu tornar a atrair-vos com flautas pastoris! Aprenda a rugir com ternura a minha sabedoria! Já temos aprendido tanta coisa juntos.

A minha sabedoria emprenhou nos montes solitários; nas duras pedras pariu o mais novo dos seus filhos.Agora corre louca pelo deserto árido e procura sem cessar o branco céspede.

No mais branco céspede de vossos corações, meus amigos; no vosso amor desejaria eu depositar o mais caro que possuo.

. . .

1883, Assim falou Zaratustra - Friedrich Nietzsche (1844-1900)
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