A Criança no Espelho
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O meu impaciente amor transborda em torrentes, precipitando-se desde o oriente até o ocaso. Até minha alma se agita nos vales, abandonando os montes silenciosos e as tempestades da dor.
Demasiado tempo sofri e estive em perspectiva. Demasiado tempo me possuiu a solidão. Agora esqueci o silêncio.
Todo eu me tornei qual boca e murmúrio de um rio que salta de elevados penhascos: quero precipitar as minhas palavras nos vales.
Corre o rio do meu amor para o insuperável. Como não encontraria um rio, enfim, o caminho do mar?
Sem dúvida há um lago em mim, um lago solitário que se basta a si mesmo; mas o meu rio de amor arrasta-o consigo para o mar.
Eu sigo novas sendas e encontro uma linguagem nova; à semelhança de todos os criadores, cansei-me das línguas antigas. O meu espírito já não quer correr com solas gastas. Toda a linguagem me torna moroso.
Salto para o teu carro, tempestade! E a ti também quero fustigar com a minha malícia.
Quero passar por vastos mares como uma exclamação ou um grito de alegria, até que encontre as ilhas bem-aventuradas onde moram os meus amigos, e entre eles os meus inimigos. Como amo agora todos a quem posso falar! Os meus inimigos também formam parte da minha ventura.
E quando quero montar no meu mais fogoso cavalo, nada me ajuda tanto como a minha lança; sempre está pronta a servir-me, a lança que brando contra os meus inimigos.
É muito grande a tensão da minha nuvem; por entre os risos dos relâmpagos quero lançar granizo às profundidades.
Formidavelmente se alevantará o meu peito; formidavelmente soprará a sua tempestade; assim se aliviará.
Verdadeiramente, a minha felicidade e minha liberdade sobrevém como tempestades. É mister, porém, que os meus inimigos imaginem que o mal desencadeia sobre as suas cabeças.
Sim, também a vós, meus amigos, vos assombrará a minha escorpiana sabedoria, e talvez vos ponhais em fuga com os meus inimigos.
Ah! Saiba eu tornar a atrair-vos com flautas pastoris! Aprenda a rugir com ternura a minha sabedoria! Já temos aprendido tanta coisa juntos.
A minha sabedoria emprenhou nos montes solitários; nas duras pedras pariu o mais novo dos seus filhos.Agora corre louca pelo deserto árido e procura sem cessar o branco céspede.
No mais branco céspede de vossos corações, meus amigos; no vosso amor desejaria eu depositar o mais caro que possuo.
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1883, Assim falou Zaratustra - Friedrich Nietzsche (1844-1900)